Ler o Mundo
Analfabetismo tecnológico.
Estamos com vários problemas de leitura hoje.
Construimos sofisticadíssimos aparelhos que sabem
ler. Eles nos lêem. Nos lêem, às vezes, melhor que nós
mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Isto se
dá não apenas com os objetos eletrônicos em casa ou
com os aparelhos capazes de dizer há quantos
milhões de anos viveu certa bactéria. Situação
paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos
lêem.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o
analfabeto também lê o mundo. Às vezes,
sabiamente. Em nossa arrogância o
desclassificamos . Mas Levi-Strauss ousou dizer que
algumas sociedades iletradas eram ética e
esteticamente muito sofisticadas. E penso que
analfabeto é também aquele que a sociedade
letrada refugou. De resto, hoje na sociedade
eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?
Não é só quem lê um livro, que lê.
Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada.
Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto
natural. A paisagem, digamos, pode ter "sotaque", assim
como tem sabor e cheiro. Por isto se fala de um jardim
italiano, de um jardim francês, de um jardim inglês.
Tudo é texto. Tudo é narração.
O astrônomo lê o céu, lê a epopeia das estrelas. Ora, direis,
ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas, na Via
Láctea. O físico lê o caos. Que epopéias o geógrafo lê nas
camadas acumuladas num simples terreno.
Ler, então, é um jogo. Uma
disputa, uma conquista de
significados entre o texto e o leitor.
Uma partida de futebol é uma forma
narrativa. Saber ler uma partida - este o
mérito do locutor esportivo, na verdade, um
leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê
coisas no texto em jogo, que só depois de
lidas por ele, por nós são percebidas.
Um espetáculo de dança é
narração. Uma exposição de artes
plásticas é narração. Tudo é
narração. Até o quadro “Branco
sobre o branco” de Malevich conta
uma estória.
Um desfile de carnaval, por exemplo, é um texto. Por isto se
fala de “samba enredo”. Enredo além da história pátria
referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a
comissão de frente são formas narrativas.
Tópico principal
Leitura Total
Só uma leitura não parcial, não
esquizofrênica do real pode nos
ajudar na produtividade dos
significados.
Semiologia
Diz-se que Marx pretendeu ler o
inconsciente da história e descobrir
os mecanismos que nela estavam
escritos/inscritos.
Daí partiu Freud, para ler o interior,
o invisível texto estampado no
inconsciente.
O médico até que se parece com o
amante. Ele também lê o corpo
Ciência da leitura dos sinais. Dos
sintomas
Paixão de ler. Ler a paixão
Movido pelo amor, pela paixão
pode o corpo falar idiomas que
antes desconhecia.
Na paixão somos lidos à nossa
revelia .
O corpo é um texto. Há que saber
interpretá-lo. Alguns corpos, no
entanto, vêm em forma de
hieroglifo, dificílimos.
Como ler a paixão se a paixão é
quem nos lê?
Tudo é leitura
Tudo é decifração. Ou não.
Ou não, porque nem sempre
deciframos os sinais à nossa frente.